sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O caminho da Pena

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015 1


por Fabio Shiva


Tem sido muito boa a experiência de escrever sobre técnicas para aprimorar a escrita. Como diz o ditado, “a melhor maneira de aprender é ensinar”. Mas à medida que fui investigando esse tema, senti cada vez mais a necessidade de falar sobre algo que vai além da técnica. Trata-se de algo mais essencial e até mais vital ao processo literário, e também infinitamente mais sutil. É algo a que só me ocorre chamar de o caminho da Pena.

Para adentrar nesse terreno simbólico, é bom ter em mente o que se convencionou chamar de o caminho da Espada. Musashi, o mais célebre samurai japonês, teve sua vida romanceada por Eiji Yoshikawa, em uma obra magnífica que por si só já vale por uma dúzia de cursos sobre a arte de escrever. Pois bem. O livro “Musashi” apresenta uma ideia a princípio desconcertante para o olhar ocidental. Essa mesma ideia é delineada com ainda mais nitidez no mangá “Vagabond”, de Takehiko Inoue, inspirado no livro de Yoshikawa. E o próprio Musashi escreveu um livro, “Gorin No Sho” (O Livro dos Cinco Anéis), onde essa ideia surge como uma filosofia de vida: é a noção de que a arte da esgrima é sobretudo uma disciplina espiritual.

Vencer os adversários em duelo, ser hábil em cortar e perfurar corpos com a espada, tornar-se um exímio ceifador de vidas, tudo isso pode ser encarado também como etapas de um iniciado em sua jornada de evolução espiritual. E é isso, em resumo, o que costuma ser chamado de caminho da Espada.

Outras boas referências para esse rico universo semântico são os filmes de Akira Kurosawa, em especial “Ran” (adaptação do “Rei Lear” de Shakespeare para o Japão feudal) e “Os Sete Samurais”.



Quando li o livro de Eiji Yoshikawa pela primeira vez, fiquei tão entusiasmado que escrevi uma letra de música sobre o tema:

O CAMINHO DA ESPADA*

No caminho de muitas andanças
Sob um sol de beleza insondável
Quem já viu incontáveis matanças
Está preparado pro inevitável

O terrível desígnio da sorte
Encadeando a corrente invisível
Quem domina aos outros é forte
Quem domina a si mesmo é o Invencível

No que consiste a arte da esgrima?
Ter em si mesmo o Adversário?
No verdadeiro Caminho
O uso da Espada não é Necessário

Aquele que vive pela Espada
Morrerá por Ela

* (Tempos depois essa letra foi totalmente reescrita e acabou virando a música Hino Humano.)


Um dos maiores ganhos que tive nessa época foi perceber o quanto o modelo proposto pelo caminho da Espada poderia somar em minha própria vida. E hoje sinto que qualquer caminho pode ser o caminho da Espada: se você segue o chamado de seu coração para se dedicar a um trabalho, seja ele qual for, e se entrega a esse trabalho com todo o seu ser, inevitavelmente torna acessível um aprendizado e uma visão mais ampla do mundo e de si mesmo que bem podem ser descritos como uma “evolução espiritual”.

O caminho da Pena, portanto, é aquele que leva a vivenciar, por meio da literatura, uma compreensão mais alta de si e do mundo. E uma característica muito própria desse caminhar é ser uma via de mão dupla, que pode ser trilhada em dois sentidos.

A primeira via é a da leitura. Sabe aquele livro que mexeu com suas estruturas e ajudou você a enxergar novos horizontes? Lembra daquele personagem apaixonante no qual você se inspirou (consciente ou inconscientemente) para lidar com essa ou aquela situação em sua vida? Quando vivenciamos momentos assim, estamos trilhando o caminho da Pena pela via da leitura.

A outra via é a da escrita. Não segue no sentido oposto ao da leitura, muito pelo contrário. Está mais para uma via superposta, ou então uma que passa por dentro da outra, por camadas mais profundas. A via da escrita poderia ter como lema o velho ditado: “vou aprender a ler para ensinar meus camaradas”. Todo escritor começa como um leitor que se apaixona por essa forma de expressão escrita e então decide aprender a gerar no mundo, com seus escritos, o mesmo maravilhamento que sentiu ao ler o que outros escreveram.

Aprender como se conta uma boa história não é pouca coisa. Mas na perspectiva do caminho da Pena representa somente os passos iniciais de uma jornada bem mais longa.

Para o grande samurai, conhecer a técnica da esgrima não era suficiente. Era preciso provar a sua força em inúmeros duelos reais. Trilhar o caminho da Espada significava estar sempre pronto para matar ou morrer. Nesse ponto a Espada é radicalmente prática, no sentido de que toda filosofia e toda religião, e até mesmo toda arte, são tentativas de lidar com a questão da morte.

De modo semelhante, o escritor deve estar imbuído do mesmo espírito, se almeja tocar o eterno com suas mãos de mortal. E assim mergulhar no mais íntimo de si mesmo, até vislumbrar lá bem fundo, no âmago das sombras, algum lampejo intenso da alma do mundo. E então travar o árduo embate das palavras, para expressar na linguagem dos homens essa ideia universal, que brilha lá dentro de seu coração.

Esse é o chamado da literatura em sua conotação mais alta: é assim o caminho da Pena.


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